domingo, 23 de novembro de 2008

Liberdade

Nunca aceitei a idéia que consiste em acreditar que vivemos em um país livre.

Eu nasci e cresci durante o período da ditadura militar imposta a todos nós a partir da revolução militar de 1964. Alguns preferem o termo golpe, mas eu não me importo. De tudo que aprendi sobre história do Brasil jamais consegui me desfazer da idéia de que todas as nossas lutas, todas as nossas "revoluções", não passaram de golpes. Temos um problema cultural de origem, mentimos a nós mesmos desde o princípio.

Entendo que, a despeito de ter nascido e crescido durante o regime militar, de tudo que aprendi, e que vivi, nos meus primeiros 20 anos de vida, foi esse período o mais marcante para mim. Tenho lembranças que, paradoxalmente, mesmo não pertencendo a uma época de liberdades políticas e individuais, jamais me fizeram sentir estar vivendo em um regime político fechado, uma ditadura.

Revistas e jornais que li na juventude, "Veja", "Folha de São Paulo", e outros tantos periódicos, são basicamente os mesmos que ainda subsistem hoje, e olhando para aquela época a sensação que tenho é a de que, para mim, havia mais liberdade ali do que toda a liberdade que supostamente temos hoje. Mesmo que toda a informação fosse censurada, sentia-me mais a vontade para protestar naquela época, pois minha desconfiança a respeito de tudo era inerente ao período de exceção por que passávamos.

Hoje me sinto, violentamente, manipulado pelo excesso de informações, a maioria inútil, que não tem outra função que não a de desinformar e controlar. Vivemos em uma ditadura pior: a ditadura da desinformação dissimulada e da qual eu, enquanto cidadão, não tenho o direito de protestar pelo simples fato de não saber contra o que, ou contra quem, dirigir o meu protesto. Sequer sabemos como fazê-lo pelo simples fato de não existir em nosso horizonte tal possibilidade de protesto.

Lembro de uma cena do filme "Quem somos nós?" em que um xamã de certa tribo, isolada do mundo exterior, era o único a ver, no horizonte em alto mar, a realidade dos barcos invasores que se avizinhavam ameaçando sua comunidade. Tudo pelo fato de o resto da tribo estar adstrita a uma realidade limitada por suas crenças, seus conceitos e preconceitos confusos e infantis, guiados pelo pai, pelo líder, neste caso o próprio xamã. Para eles não havia tal realidade, não podiam sequer imaginá-la. Como, então, poderiam duvidar e ver qualquer outra coisa que não eles mesmos, ou até duvidar do xamã? O xamã reinava tranquilo e absoluto. Belo filme, que por essa única cena já teria valido todo o resto!

O fato de não haver, hoje, militares no poder e de podermos votar para escolher nossos representantes políticos não significa que temos mais liberdade do que tínhamos naquela época. Também não significa que um regime seja melhor que outro. O problema está mais nas pessoas, em sua cultura e formação, que nas formas de governo, bem sei.

Das formas de governo ressentem-se mais os "artistas", e a muito custo acredito na arte brasileira. Quando muito consigo enumerar meia dúzia de escritores de que gosto realmente, talvez alguns poucos músicos, e um ou outro artista plástico de respeito.

Vejo neles, os artistas, um reflexo deformado de nossa realidade e do que continuamente nos transformamos a nós mesmos. Há, na rede aberta, um canal de TV que impõe, a todos, o tipo de comportamento que acha mais adequado ao País a partir do modo de vida de seus "artistas funcionários". Infidelidade, traição, desonestidade, culto ao sexo livre e sem limites, e tudo o mais que lhes interessar no momento, passam a valer como regra, desde que sejam para encobrir as mazelas que eles mesmos constróem para si, por meio de seus atos egoísticos e deprimentes. É só abrir os jornais ou ligar a TV para sabermos de fulano (artista), que socou fulana (artista), por ciúme, traição, infidelidade. Ou fulano (um qualquer) que, sendo um anônimo de 30 anos de idade, portanto jovem, casou-se com fulana (artista) de quase 70 anos, rica e famosa, cinicamente, por amor; e que posteriormente foi flagrado em motel com prostitutas ou mulheres bem mais jovens. Isso é o que somos!

Não me tomem por falso moralista. Não tenho nenhuma pretensão aqui de dizer qual o caminho seguir a respeito do que quer que seja, muito menos ainda sobre amor, sexo e poder econômico. Mas não posso aceitar a idéia de que alguém possa dizer-me, ou a qualquer outra pessoa, qual o caminho seguir, qual a direção certa ou o que seria melhor e mais apropriado para minha vida.

As artes no Brasil são tão insipientes quanto as escolas que (de)formam os artistas. Na faculdade de arquitetura aprendi que estamos rodeados de professores incapazes e impotentes quando se trate daquilo que ensinam. Temos os melhores professores que são tanto mais competentes quanto mais fazem valer aquele ditado americano que diz: "Quem sabe fazer, faz; quem não sabe fazer, ensina!" Quase sempre são, com raras exceções, profissionais frustrados que, não tendo talento nem capacidade, ensinam na condição de professores.

Não sei de grandes escolas de artes dramáticas, ou de música, ou de literatura, ou de belas artes, que tenham renome, que falem por si. Não sei de escolas donde tenham surgido, nutridos por nossa cultura, grandes nomes de nossa arte. O que vejo é que os filhos dos artistas são, "prodigiosamente", reflexos dos próprios pais e por isso mesmo "talentosos", herdeiros de uma genética medíocre onde o sobrenome diz quem você é, a partir de quem foram, ou de quem são, seus pais.

Nossa arte nasce dos filhos dos filhos dos filhos dos músicos, dos artistas dramáticos, dos escritores... Curiosamente são sucessivas gerações de "artistas". Eu pergunto onde está, então, nossa arte? Reconheço, há exceções, mas nada têm a ver com tais escolas onde a origem já traz implícita a competência, seja qual for. Ainda assim, muitas vezes, tais exceções, acabam por se render ao sistema medíocre criado pela elite para divulgar-se a si mesma e sua mediocridade. É o caso de Ariano Suassuna que após décadas de resistência tornou-se, nos últimos anos, figura fácil na mídia, a troco de algumas migalhas de reconhecimento e alguns trocados. Não o culpo, considero-o um vencedor e merecedor de muito mais do que jamais recebeu ou receberá, mas não o vejo mais com os mesmos olhos com que sempre olhei para um Drummond ou uma Clarice Lispector.

Não quero ser hipócrita, por isso não posso aceitar a idéia de que vivo em uma sociedade livre. Ora, vivemos uma farsa e nos tornamos, senão a mais, uma das sociedades mais cínicas e superficiais jamais vistas. Nossa cultura, por meio de nossa elite econômica, veio se especializando, ao longo de sua história e de sua formação, na prática infalível de roubar dos outros todas as oportunidades e possibilidades de futuro possíveis mantendo-se, assim, eternamente no poder.

Hoje o que vemos, quando observamos a nós mesmos, é um amontoado de vícios. De um lado o mais rudimentar trabalhador faz de tudo para fugir da exploração miserável de seu trabalho, quase sempre, remunerado injustamente; ainda assim, encontra coragem para explorar o colega que com ele trabalha lado a lado, a fim de obter alguma vantagem, mesmo que seja apenas a de trabalhar menos. De outro, temos um alto funcionário de empresa privada ou pública, que podendo obter algum lucro pessoal, em razão do cargo, quase sempre não hesita.

Não construímos com decência a nossa cultura, não temos literatura, não temos teatro, não temos música e de maneira geral não temos arte. Em resumo não temos País. Podem não concordar, podem me hostilizar, mas não temos senão o nosso cinismo e com ele nos moldamos, nos construímos. Não temos coragem de olhar para o lado, sob o risco de, a qualquer momento, encararmos o vizinho mais próximo e vermos a nós mesmos, sem gostar de absolutamente nada do que poderemos estar vendo.